IRENE BUARQUE
Pessoa e o Império Celeste
Nuvens: "Acervo de vapores que, suspenso na atmosfera, turva o azul do céu. Obscuridade; sombra. Turvação da vista; Porção de fumo ou de pó que se eleva na atmosfera. Fig. Tristeza. Aquilo que impede a compreensão. Grande porção de coisas reunidas, em movimento". ("Grande Diccionário de Língua Portuguesa", Cândido de Figueiredo). No caso das Nuvens de Teresa Dias Coelho (recentemente expostas na Galeria Pedro Sem), que podem considerar-se uma obra una, há ainda um percurso do olhar ligado a corpos sem forma, metafóricos, transitórios, uma projecção que a artista considera ser a de uma vivência que vai até uma dimensão cósmica no uso da cor, a de uma presença/ausência.
Há nestas telas, inseparáveis de uma realidade histórica, uma nostalgia que difere do "spleen", da angústia ou do tédio, um não sei o quê onde se ocultam lugares afectivos de revelação poética do espaço, de que falava Gaston Bachelard, ou de uma determinada lógica deleuziana - a de esquizo-análise dentro da qual se leva a cabo uma desarticulação de conceitos básicos da cultura moderna - para a qual nos remete a artista. Não é, afinal, a nostalgia de uma melancolia humana tornada possível pela consciência de qualquer coisa outra possível entre as nuvens de fogo ou safira?
A inquietação revela-se nesta pintura construída segundo regras clássicas, não alheadas, porém, de um certo sentido da fragmentação e da historicidade dos céus das igrejas, que fazem supor uma arte "no tempo", que se confronta com o medo - "a morte está no começo, a eternidade a cada momento" - e a solidão. Como uma espécie de vigilância perante um sonho originário, a raiz nebulosa e a claridade exigem em simultâneo uma embriaguez furiosa diante de um quotidiano fora da razão.
O desassossego pictórico procede a um lugar que poderia ser o do diálogo ou do conflito amoroso, de zonas de desconhecimento ou de treva, de vazios abertos pela opacidade do mundo, de uma ilusão de definitivo. Daí o nevoeiro castanho que assenta nos fins de tarde, a luminosidade amarelada dos últimos raios do sol ou as impossíveis cores azuladas dos doces lamentos, do que estava vivo e agora morreu.
Não foi, decerto, por acaso que a pintora começou a fotografar cemitérios - projecto abandonado quando da morte do poeta Al Berto -, "encenou" fragmentos de estátuas, ilustrou as "Dores" de Maria Velho da Costa ou esventrou flores. As turbulentas nuvens de Teresa Dias Coelho abarcam o silêncio das montanhas e os trovões estéreis sem chuva, acolhem a cristalina água que já não vem, fazem imaginar rostos hostis à porta de casas sem gente ou a (im)paciência dos que esperam.
Nestes céus, a nostalgia não se resolve, assumindo-se um lado contemplativo da criatura consciente. No mínimo de significantes, o máximo de sugestões. E nesta série, Teresa Dias Coelho capta, na contemplação do volátil, um pressentimento dentro do nada, bem como a "verdade" de Arnold Böcklin, espécie de profeta dos meios idealistas e simbolistas, e d' "A Ilha dos Mortos" - que inspirou o poema sinfónico de Rachmaninov com o mesmo nome -, ou a essência dos românticos, entusiastas de Goethe.
As emoções transformam-se, assim, em fenómeno meteorológicos, detentores do seu próprio ritmo. Para o poeta, a arte admite ao indivíduo "preservar do poder destruidor do conjunto", assumindo a experiência artística a função de baluarte na luta contra o caos. E, para os românticos, não há nada sem conflito. Vida e intelecto, história e eternidade, solidão e sociedade, revolução e tradição são, afinal, possibilidades que se querem verem realizadas ao mesmo tempo.
Neste panorama bromoso de sóis pálidos ou histéricos, sugeridos na possibilidade da sua existência, a pintura funciona como uma espécie de orquestração que dependem da adesão a uma certa melancolia existencial, seja ela lúcida e analítica, profunda e mesmo feliz, ainda que consciente da irreversibilidade do tempo.
No trabalho de Teresa Dias Coelho, a pessoa humana não é outra coisa do que isso a que Kierkegaard chamou "espirito", captado aqui no dualismo vida/morte, natureza/não-natureza, corpo/não-corpo. E o outro Eu está sempre presente, como nos românticos, cujo conceito de angústia dir-se-ia inseparável da noção de ameaça. Do trágico literário de Friedrich, que ergeu uma espécie de monumento megalitíco à derrota humana, às nuvens de Delacroix e Géricault ou às visões etéreas pintadas com um vapor colorido por Turner.
Há nesta série surda, ainda que clássica, vontade de romper com um mundo de convenções e, embora estas telas possuam um lado decorativo, revelam também uma consciência amarga de condenação sobre o signo de Saturno. "Na angústia não existe o Outro" dizia Maria Zambrano, "e é a plena existência do Outro que seria o uno, que a desfaria".
Nestes céus, abertos e toldados, acolhe-se a morte em silêncio. O confronto com a possibilidade de morrer, irredutível e privilegiado, renasce aqui, revestindo-se a emoção de uma luminosidade solidária, como se cada nuvem representasse um estar último, prévio a qualquer partida, a dos amantes ou da vida.
Reconciliadas também com a possibilidade de comunicação com o mundo, as nuvens de Teresa Dias Coelho articulam-se contraditoriamente com uma irresistível vontade de partir e de ficar. Aí reside o seu encanto, o da suspensão do real no ideal ou o da capaciade de convivência com a melancolia. Ou de sobre ela triunfar.
Pessoa e o Império Celeste
Eduardo Lourenço
Fevereiro 2006
© Irene Buarque 2018